outubro 27, 2015

Nepal - Conto do vigário - Lições de vida por Kathmandu




"Colorindo fora com nossa palheta interna."


Era uma vez uma mãe com uma criança no colo e quatro amigas passeando pelas ruas de Kathmandu. A mãe se aproxima e não pede dinheiro, apenas leite para o bebê. Lógico que a criança era uma fofura, unia as mãos e balançava a cabecinha falando "Namaste". Arrasava o coração de qualquer mulheres. As amigas foram até o primeiro supermercado em busca do leite. Quando entraram a mulher sinalizou um tipo especifico e perguntou se não podia levar outras coisas básicas. Virou uma compra de supermercado com direito a xampu e amêndoas. Na hora de pagar: tcha, tchan, tchan, tchan.... 150. Ok dividindo entre as amigas.... Quase 40 dinheirinhos nepalês.

_ Não! Diz o caixa. Dólar!!!!!

_ O quê? Dólares? Tá maluco? Nem no supermercado mais caro de São Paulo custaria isso.

Saem as amêndoas, até porque nem ganho o suficiente para comprar amêndoas. Sai xampu; convenhamos que não é essencial para doação... Então descobrimos: Leitinho de ouro pela bagatela de vinte dólares! Quê? Tá maluco? Quem toma isso? É de ouro?

Nesse momento a terra parou! As amigas se olharam e a questão da doação versos exploração ficou na conversa de olhares. Pagaram um leite e deram para a mulher, que por sua vez voltou ao supermercado, devolveu e pegou o dinheiro. Esse é o famoso conto do leite que caímos como "patinhas".

Olhando hoje, provavelmente aquela mulher não ganharia tanto dinheiro se tivesse pedido, mas contos do vigário têm em todos os cantos do mundo.

Outro conto é sobre uma terra muito, muito distante dos anões... Deve acontecer alguma coisa na região, pois tem muitos anões por aqui. Não falo da estatura da população. Os nepaleses têm estatura baixa. Imaginam todos da minha altura -- para os que me conhecem -- adorei e virei alta na região. Diferente da nossa sociedade aqui não existe exclusão. Pelo pouco que pude observar, todos são inseridos no mercado de trabalho e em qualquer atividade. Não existe diferença religiosa, de nacionalidade, raça ou tamanho. É bonito de ver! Uma boa lição para nosso preconceito.

O conto foi real. Namaste!

Senhora vendendo verdura.

Cena muito comum nos bairros. 

Acredito que são orgânicas.

Roda de oração. 

Outra boa lição é o chamado desapego.  A cidade não tem energia 24 horas, geralmente de noite tem luz, no meio da madrugada, ficamos sem. Se você quiser comer ou comprar no escuro. Tranquilo! Nada para e tudo funciona perfeitamente. Existe um rodízio de energia na cidade. Não tem um padrão definido, apenas os moradores saber mais ou menos quando poderão contar com a "santa luz" que não vivemos sem. Foi um belo exercício de paciência e desapego - principalmente do celular. Fiquei imaginando se em São Paulo não vamos chegar a esse ponto, sem água, sem luz... Mas fiquem tranquilos, nos adaptamos e continuaremos felizes. A tarefa mais árdua era para carregar o celular, nem tanto pela conexão, mas para ter bateria para as fotos. Por fim, eles estão conectados na internet. Fácil encontrar wifi nos restaurantes e cafés e não paga nada, mas sem energia sem rede, a alegria dura pouco.

Entender as diferenças desse lindo povo, abre a cabeça. A simplicidade e a coragem com que enfrentam a vida dura fizeram-me agradecida pelo "berço esplêndido" que vivo e envergonhada por não ter um milésimo dessa força.

Ao redor do centro encontram-se bairros ainda mais pobres, à nossa vista. Miseráveis mesmo. Senhoras carregando enormes cestos apoiados na cabeça vendendo alimentos e crianças saindo da escola com uniformes inglês, resquício da invasão do passado. Contrapondo as duras atividades diárias estão o sorriso e as cores nas roupas, casas e carros. Onde podem, pintam de colorido. Hoje acredito que é a expressão da cor interna de cada um.

Certa vez ouvi que os acontecimentos a nossa volta são apenas reflexos de nosso estado interior. Intelectualizar essa linda frase não é difícil, mas vivenciá-la é um processo doloroso. É aceitar que a responsabilidade de que tudo que não está saindo como desejamos, é simplesmente nossa. E pior, quando achamos que conseguimos entender, percebe-se que não realizou. Não é resignação, não é se sentir culpado, é entender o processo de maneira ampla. É colorir o fora com nossa palheta interna.

Após um mês da minha saída de Kathmandu, teve o grande terremoto que acabou com a cidade. Apesar de muita comoção e tristeza, um amigo e velho conhecedor de KTM me disse: internamente eles estão preparados para isso; já vivem com tanto sofrimento e escassez que dão outro valor à matéria, enxergam tudo como transitório e vivenciam o mundo com desapego.

E meus amigos nepaleses continuam colorindo o mundo com sabedoria. Namaste!

Colorindo a pobreza. 

Crianças voltando da escola. 

Uniforme - resquicio da colonização. 

Hora da compra em bairro classe média. 

Bandeiras de oração na estufa de Boudhanath. 

4 comentários:

  1. Amo ler suas experiências, você as descreve tão lindamente que por vezes me sinto viajando junto com você. Parabéns minha querida esse previlegio é para poucos. ��

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada! Venha comigo... te levo por onde andar... =)

      Excluir
  2. Wow! Devorei todos os posts! A Ane me passou seu link e estou amando seus textos, sua gramática e suas histórias. Os pontos de vista de positivos mostram o quão positiva você está e é tão importante nesses primeiros meses de mudança. Vou voltar mais vezes, com certeza. Beijão e boa sorte nessa jornada!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada =)! Sempre temos duas opções na vida: ser vítima ou ser forte! Melhor dar risada e enfrentar positiva! Nem todos os dias são fáceis, como em qualquer lugar, mas chega o dia seguinte e as lágrimas de ontem viram a história de amanhã! Grata pelo lindo comentário!

      Excluir